A reflexão é de Lucíola Cruz Paiva Tisi, teóloga leiga, bacharel em teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (2017) e mestranda em Teologia sistemática também pela PUC-Rio. Atua junto à Congregação dos Agostinianos da Assunção como leiga e na paróquia agostiniana da Santíssima Trindade no Rio/RJ, no catecumenato de adultos e como ministra extraordinária da eucaristia. Também integra um grupo de reflexão e estudos de leigos do qual faz parte.
1ª Leitura - Br 5,1-9
Salmo - Sl 125,1-2ab.2cd-3.4-5.6 (R. 3)
2ª Leitura - Fl 1,4-6.8-11
Evangelho - Lc 3,1-6
No evangelho desse domingo vemos Lucas descrevendo a situação histórica onde o acontecimento ocorre descreve os poderes vigentes do mais elevado ao mais ínfimo, começa falando do imperador romano, Tibério Cesar, passando pelos poderes políticos: governador Pôncio Pilatos, Herodes, Felipe e Lisâneas, os tetrarcas da região, além de citar os poderosos sumos sacerdotes Anas e Caifás. No final vem a citar João Batista, aquele que escuta a voz do senhor no deserto. Lugar onde, na solitude, se consegue ouvir a voz de Deus. O deserto é lugar de encontro com o Senhor, lugar que se refere ao tempo de reflexão, de crescimento interior que vem nos remeter a libertação do Egito e a travessia de 40 anos que faz um grupo de pessoas se constituir como um povo.
Vimos Deus agir em favor do povo com Moisés por ocasião do êxodo do Egito, em movimento de libertação. Vimos também no retorno a terra do exilio após 70 anos, também em movimento de libertação: esperança profética narrada por Isaias e pelo próprio Baruc na primeira leitura de hoje (Br 5,1-9), na qual lemos no versículo 1: “despe Jerusalém a veste da sua tristeza e desgraça, e reveste para sempre a beleza da glória que vem de Deus” e concluí com a esperança do resgate do povo, “ele saíram de ti a pé, arrastados por seus inimigos, mas Deus os reconduz a ti, carregado de glória, como para um trono real”.
No Evangelho (Lc 3,1-6), vemos o anúncio da esperança que chega do deserto, da periferia do mundo de tantos poderes, anunciado por João Batista, fazendo memória das escrituras, ao texto de Isaias: “A Voz do que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas; todo vale será aterrado, toda montanha ou colina será abaixada; as vias sinuosas se transformarão em retas e os caminhos acidentados serão nivelados. E toda a carne verá a salvação de Deus”. O Senhor vai agir na história, o Messias tão esperado chegou. É Deus conosco na kenosis de sua encarnação. Precisamos então abrir os caminhos para ele poder se manifestar; abrir o coração e a mente para a novidade que chega, para a proposta paradoxal de Deus. Precisamos acolher e escolher o caminho de conversão, de mudança de mentalidade, para perceber a graça que emerge no evento Cristo.
No deserto nos deparamos com o essencial, com a simplicidade. Adentrar no deserto é busca do silêncio, da solitude, para poder escutar a Deus. É tomar distância das intrigas e maquinações. Vemos isso no comportamento de João Batista, que se afasta das ações de Pilatos e Antipas, do ruído do templo, dos negócios dos proprietários de terra.
Para Isaias o deserto é o melhor lugar para abrir-se a Deus. No deserto é decisivo cuidar da vida. Pensemos no nosso deserto como o lugar onde se vive o essencial, onde não há lugar para o supérfluo. É lugar onde escuta-se sem complacência ou autoengano, lugar da intimidade, lugar onde a voz se faz clara que não fala das rusgas humanas, estratégias... Fala do coração, do necessário, do essencial para a vida e para a felicidade. João nos propõe a nos colocarmos diante de Deus para reconhecer nossas faltas. Para isso, para reconhecer nossos pecados, é preciso reflexão, ir a raiz, suspeitar de nossa inocência. Sempre somos cúmplices de alguma forma, responsáveis pelas consequências individuais e sociais de nossas atitudes, infiéis em nosso comportamento coma Igreja e com o Evangelho.
Essa possibilidade exige a modificação do nosso olhar no que se refere a realidade que nos cerca. Já nascemos limitados a um sistema e a uma cultura que nos precede. A opressão dos menos favorecidos, dos mais frágeis não acabou no tempo de Jesus: veio nos acompanhando no desenvolver da nossa história e permanece ainda hoje. Realizar essa metanoia não é fácil, mas está se tornando cada vez mais evidente a sua necessidade. Na sociedade onde vivemos as idolatrias levam ao individualismo, ao egoísmo e ao sucesso material. Acabamos atropelando o outro, que se torna cada vez mais incômodo, quando não invisível, onde não é lhe permitida a voz, a dignidade e até a sobrevivência. Até as famílias hoje aparecem diluídas em meio a situações alienantes onde os indivíduos pouco convivem.
João grita, quer despertar o povo, acender a fé no Deus Salvador: “Preparai os caminhos do Senhor...” Como? Através da busca pessoal. Deus se encontra hoje encoberto por preconceitos, dúvidas, más recordações, experiências religiosas negativas. Precisamos buscar o Deus vivo e verdadeiro que se revela em Jesus Cristo. Deus que se deixa encontrar por aqueles que o buscam. No nosso semelhante podemos ver sua face, assim como na criação. Em tudo a nossa volta o senhor se revela, se faz presente. Mas para tal percepção é preciso atenção interior, descer ao fundo do nosso coração onde encontraremos nossos medos, perguntas, desejos escondidos e muitas vezes o vazio. Ele, no entanto, está lá, a nossa espera, e aí em sua companhia podemos descansar. Viver na verdade, reconhecer nossos erros e pedir: Deus, tenha compaixão de mim, com atitude confiante de quem se reconhece amado. O medo nos fecha, muitas vezes temos medo de encontrar Deus, medo de seu juízo, medo da punição que pode nos impingir. Esquecemos ser ele amor que não julga, acolhe e abraça com sua misericórdia. Ao nos sentirmos amados, acolhidos, em seu encontro, nos sentimos fortes e transformados, reconhecemos nossa fragilidade diante de sua grandeza insondável. Fazer esse percurso é viver a experiência que abre os caminhos da nossa vida. Descobrimos como é bom crer, como é bom servi-lo, e saímos a anunciar, abrimos nosso coração e rompemos com nossas inseguranças. Preparar os caminhos do Senhor é, a exemplo da comunidade de Filipo (Fl 1,4-6.8-11), viver em comunidade no amor e no discernimento, como testemunha Paulo com sua alegria: “ e sempre em todas as minhas súplicas oro por todos vós com alegria pela vossa participação no evangelho desde o primeiro dia até agora ,e tenho plena certeza de que aquele que começou em vós a boa obra há de leva-la à perfeição até o dia de Cristo Jesus.”
A interioridade nos coloca diante do mistério, caminhamos sempre às escuras. Para Deus se caminha sempre a partir de dentro. Vamos preparar os caminhos do Senhor, no silêncio, na escuta, atentos ao mistério que nos envolve, reconhecendo seu amor, sua misericórdia, na certeza de que está sempre conosco. Termino então com as palavras do salmista (Sl 125): a boca se nos encheu de riso, e a língua de canções...o Senhor fez grandes coisas por nós. Por isso estamos alegres.